"Não vejo chance": busca de Massa por título de 2008 é tarefa judicial hercúlea

Felipe Massa está em meio a uma caça para receber o reconhecimento de campeão mundial da Fórmula 1 2008 por conta dos desdobramentos do caso conhecido como ‘Crashgate’, que completa 15 anos nesta semana. Do ponto de vista legal, busca é inglória

Faz 15 anos que um domingo aparentemente tranquilo, em que Felipe Massa dominava e parecia destinado a vencer do começo ao fim, transformou-se, como num passe de mágica, em macabro pesadelo. Uma década e meia ficou no retrovisor desde aquilo e quase tanto tempo assim ficou no passado desde que o mundo soube que o acidente que mudou aquela corrida fora arquitetado entre quatro paredes, na garagem da Renault em Singapura. E que a maior vítima daquilo tudo fora Massa, que viu o impacto na briga pelo campeonato se tornar imenso. Agora, na busca legal para sentir que finalmente recebeu justiça, Massa quer o título. Mas transformar o desejo em realidade é judicialmente digno de uma das 12 tarefas de Hércules.

O que foi que aconteceu naquele GP de Singapura de 2008 exatamente? É um assunto tão falado ao longo dos anos, mas quase nunca é esmiuçado e, talvez, a memória já traia para que a lembrança exata dos acontecimentos da ocasião se tenha perdido numa complexa linha temporal.

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Em meio ao começo da crise econômica que sacudiu o mundo naquela parte final dos anos 2000, havia a ameaça real de que a Renault abandonasse a Fórmula 1 ao término da temporada 2008 caso a equipe, que fora bicampeã em 2005 e 2006, não vencesse ao menos uma prova. Assim, a decisão foi tomada pelo chefe Flavio Briatore de que a vitória deveria vir em Singapura, única pista onde havia alguma chance, ainda que remota. Depois de Fernando Alonso sofrer na classificação e ficar com a 15ª posição no grid, a ordem foi dada, com ajuda ainda do diretor-técnico Pat Symonds: Alonso faria estratégia diferente e pit-stop cedo na corrida, enquanto o então novato Nelsinho Piquet teria de bater em parte específica do traçado para causar safety-car em momento pré-combinado.

Tudo isso aconteceu e abriu a porta para Alonso vencer a corrida — o bicampeão sempre garantiu não saber do esquema e foi absolvido após investigação do Conselho Mundial da FIA. No caminho, Massa, que partia na trilha da vitória após anotar a pole no dia seguinte, viu a estratégia dele arruinada. A coisa pioraria quando, na ida aos boxes pós-safety-car, a Ferrari colocou os pés pelas mãos e liberou Felipe para voltar à pista ainda com a mangueira de reabastecimento presa. Massa precisou parar no fim do pit-lane, esperar mecânicos da Ferrari chegarem correndo para ter a mangueira finalmente sacada. Ainda foi punido pelo lance e precisou voltar aos boxes pouco depois. Ficou, assim, na 13ª posição e fora dos pontos. No fim do campeonato, perdeu o título para Lewis Hamilton por um único tento.

A história foi conhecida um ano depois, em setembro de 2009, logo após Nelsinho ser demovido da titularidade na Renault em prol de Romain Grosjean. As investigações do Conselho Mundial da FIA levaram à punição de Symonds e Renault, além do banimento de Briatore. Piquet não foi punido, mas nunca mais esteve no grid. Como o inquérito da FIA andou rápido e, efetivamente o resultado estava homologado desde o fim de 2008, Massa e Ferrari decidiram não entrar com processos legais.

Mais de 13 anos se passaram até que, em março deste 2023, as coisas mudaram. Bernie Ecclestone, chefão da Fórmula 1 em 2008, deu uma entrevista para o portal alemão F1-Insider onde garantiu: sabia de tudo ainda durante o campeonato. “Max Mosley [então presidente da FIA, já morto] e eu fomos informados do que acontecera em Singapura durante a temporada 2008. Piquet contara para o pai, Nelson, que recebera o pedido da equipe de bater propositalmente no muro em determinado momento para forçar uma intervenção do safety-car e, assim, ajudar o companheiro de equipe Alonso”, contou. “Decidimos não fazer nada naquele momento. Queríamos proteger o esporte e evitar um escândalo. Foi por isso que falei, com uma língua de anjo para meu antigo piloto Nelson [Ecclestone foi chefe de equipe de Piquet na Brabham, nos anos 1980] para manter a calma inicialmente”, revelou.

O momento da batida de Nelsinho Piquet no muro de Singapura (Foto: Reprodução/F1)

"Havia uma regra de que a classificação do campeonato era inviolável depois da cerimônia de premiação da FIA, no fim do ano. Hamilton recebeu o troféu do Mundial e tudo ficou bem. Mas tínhamos informação o bastante para investigar. De acordo com o estatuto, provavelmente teríamos de cancelar a corrida em Singapura sob tais condições. Significa que nunca teria existido para o resultado. Assim, Felipe Massa teria se tornado campeão mundial, não Lewis Hamilton", falou Bernie.

Foi o que fez com que Massa se levantasse, pela primeira vez em quase 15 anos, para mexer no vespeiro da situação. Afinal, uma coisa é o mundo inteiro ter conhecido o escândalo de manipulação da corrida um ano depois, quando o resultado estava homologado. Outra coisa diferente é saber que a chefia da F1 e da FIA já fora informada no meio do Mundial, quando alguma coisa ainda poderia ser feita. Além da novidade, a declaração de Ecclestone abriu velhas feridas, como o incômodo com a maneira como a investigação da FIA foi conduzida.

“Acho que tudo o que aconteceu no final, o resultado e a investigação, não foi do jeito correto. Quem saiu punido?”, questionou Felipe, em entrevista ao GRANDE PRÊMIO.

“No ano anterior, a McLaren foi desclassificada do campeonato de Construtores e pagou US$ 100 milhões [por conta do escândalo de espionagem conhecido como ‘Spygate’]. O que aconteceu com a Renault? Nada. Mudaram o título, é uma coisa muito séria”, recordou.

“Sabíamos que tinha uma regra que dizia que, quando um piloto recebesse um título, o resultado não poderia ser mais mudado. Eu sabia dessa regra, confiei na Ferrari também, nos advogados da Ferrari, e ficou por aí. Aí, de repente, agora, 15 anos depois, a gente escuta uma situação completamente diferente, onde os chefes da categoria, como Bernie Ecclestone, Max Mosley, Charlie Whiting [diretor de provas, também já morto] sabiam disso em 2008 e não fizeram nada para não riscar o nome da Fórmula 1. Então isso mostra que, no final, a pessoa que mais saiu perdendo com tudo isso, numa manipulação, numa sacanagem, fui eu. Então, foi o que aconteceu, e nós vamos lutar para que a gente tenha uma justiça”, assegurou.

Nelson Piquet e Bernie Ecclestone: relação de longa data (Foto: Reprodução)

“A F1 é uma prova internacional, então, está ligada ao tribunal da FIA. E ele vai dar que está prescrito."

Com as novas informações em mente, Massa juntou um time transnacional de advogados de diferentes especialidades: profissionais do Brasil, Inglaterra, França e Suíça estão envolvidos. Em entrevista concedida à revista inglesa Autosport no começo deste mês, o advogado que lidera o caso no país, Bernardo Viana, afirmou que enxerga como “provável” a chance de conquistar o objetivo: reconhecimento de que Massa é, de fato, o campeão mundial de 2008.

O GRANDE PRÊMIO procurou especialistas que pudessem ajudar, de alguma maneira, a esclarecer o assunto. "Não [existe chance de ‘conquistar’ o título]. Existe uma coisa chamada prescrição. É o seguinte: a nossa legislação tem o maior prazo expirando com dez anos. Não sei exatamente como é a legislação da França, mas, levando em conta o código desportivo da FIA, não vejo a mínima chance", afirmou Paulo Scaglione, advogado e que foi presidente da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA) em dois mandatos, entre 2001 e 2009, e ex-membro do Conselho Mundial de FIA.

“Existe uma coisa chamada prescrição e decadência, que define um prazo para reclamar”, falou Paulo Sergio Feuz, que é presidente da Comissão de Direito Desportivo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). "Se fosse aqui no Brasil, utilizando da regra da justiça do esporte brasileiro, o caso do Felipe Massa estaria prescrito. Precisa ver a normativa internacional para ver se ele pode reclamar essa questão”, apontou.

Nas leis esportivas de França e Reino Unido, a prescrição também está prevista. Mas Scaglione vai um pouco mais fundo sobre quem trataria do caso Massa: não seriam as justiças desportivas de cada país, mas, visto que se trata de uma organização transnacional, o tribunal de arbitrariedade da própria FIA. Com a garantia, ainda, de que nada teria a ver, por exemplo, com a justiça comum.

“É a justiça desportiva que define isso, é o Tribunal Superior da FIA. É que o Tribunal é independente da federação, ele é formado por membros escolhidos por clubes, pelos pilotos, pela própria federação. São eleitos. É coisa séria. Não tem nada a ver com Justiça Comum. Nós temos um artigo na Constituição que diz que atos ligados a questões desportivas são julgados na Justiça Desportiva. E a F1 é uma prova internacional, então, está ligada ao tribunal da FIA. E ele vai dar que está prescrito", assegurou.

Trecho destacado do Código Esportivo da FIA para 2008 (Foto: Reprodução)

A reportagem do GP buscou, então, um trecho do Código Esportivo da FIA publicado em dezembro de 2007 e válido a partir de 1º de janeiro de 2008. O trecho destacado abaixo constitui o Artigo 179b, do capítulo 12, do código de 2008.

"Se, em eventos que façam parte de campeonatos FIA, um novo elemento for descoberto, ainda que os comissários tenham decidido algo ou não, estes comissários do evento ou, caso isso fracasse, novos [comissários] designados pela FIA, devem se reunir em data acordada entre eles, convocar a parte ou partes envolvidas e ouvir quaisquer explicações relevantes, e julgar com a clareza dos fatos e elementos trazidos perante a si", definia.

"O direito de apelar sobre uma nova decisão está confinada à parte ou partes envolvidas de acordo com o parágrafo final do Artigo 180 [onde, exatamente, informa que as apelações podem ser submetidas à Corte Internacional de Apelos da FIA] e os outros artigos deste código. Caso a primeira decisão já tenha sido sujeitada à apelação ante à Corte Nacional de Apelos, a Corte Internacional de Apelos ou ambas, o caso deve ser entregue a eles para possíveis revisões de decisões anteriores", continuava.

"O período no qual a revisão de uma apelação pode ser levantada termina no dia 30 de novembro do ano atual [2008]", finalizava.

No começo do Código Esportivo, logo no Artigo 1, Capítulo 1, o texto é claro. "A FIA deve ser a única autoridade esportiva capaz de criar e impor regras para o incentivo e controle de competições e registros ligados ao automobilismo, bem como organizar os campeonatos FIA e deve também ser a corte internacional de apelos final para a decisão de disputas que deles [campeonatos chancelados] surgirem", apontava. Vai, portanto, ao encontro do que diz Scaglione: é a FIA, não as autoridades nacionais, quem tem a prerrogativa de definição derradeira sobre os destinos da F1 2008.

Felipe Massa venceu o GP do Brasil em 2008, mas não ficou com o título (Foto: Ferrari Media)

“E, aí, o Hamilton foi declarado campeão, acabou”

A saída para buscar algo diferente do que ficou definido, de acordo com os advogados, teria sido mesmo uma junção entre Ferrari e Massa em 2009. "Exatamente, é assim que funciona o processo. Era recorrer da decisão na hora, você não pode ficar com um machado na cabeça por 50 anos. E, aí, o Hamilton foi declarado campeão, acabou. Tudo você precisa provar, inclusive na FIA. Precisava de um inquérito, tudo mais", afirmou Scaglione.

Feuz até sugere uma situação em que o caso teria mais chances de prosperar. “Se tivesse tido um processo que apurasse a manipulação acontecendo agora, saísse o resultado e só agora tomado ciência do caso”, apontou.

Apesar de Ecclestone ter tratado como provável que o GP de Singapura seria cancelado, o mais provável é que o antigo chefe supremo da Fórmula 1 – que, aliás, disse não lembrar de ter dado a entrevista quando a revolta de Massa se mostrou pública -, estivesse pareando a opinião com o resultado final. A maior possibilidade é que a punição esportiva fosse a mesma da McLaren em 2007: a exclusão da Renault do Mundial de Construtores e talvez de todos os resultados dos Pilotos da mesma forma. Algo que em nada ajudaria Massa.

O fato de Ecclestone se manifestar verbalmente também não impacta tanto assim na situação. "Tenho para mim que isso foi só um jogo de palavras do Bernie para criar aquela tensão, só isso”, falou Scaglione ao GRANDE PRÊMIO. “Não muda nada na prática. Na ocasião, foi feito um processo investigativo, agora já não tem mais o que se falar. Ele [Massa] deveria se socorrer na ocasião do inquérito, depois disso transita em julgado e aí acabou, não tem jeito", declarou. “A prova da manipulação tem de ser contundente. Efetivamente tem de se mostrar que houve a manipulação”, complementou Feuz.

Com relação a precedentes no esporte, Scaglione minimiza. "O futebol já teve alguns casos, mas relacionados à soma de pontos e nunca passou tanto tempo assim. Os recursos sempre aconteceram dentro dos prazos corretos. É importante lembrar da prescrição", finalizou.

“A meu ver e sentir, muito embora ache que ele mereça o título, mas de direito acho que está prescrito o caso dele” falou Feuz.

Nos próximos meses, Massa e a equipe legal ainda tomarão decisões sobre avançar ou não nos casos e em quais países tentarão agir. Mas, embora preguem confiança pública no sucesso, sabe-se que as chances de Felipe virar campeão de 2008 agora ou em algum momento do futuro são escassas.