Ferrari desconhece próprio carro e vive de tentativa e erro. E nem pilotos se salvam

É tudo muito misterioso na Ferrari. A equipe italiana, que trocou de chefe e promoveu enorme mudança em seus departamentos técnicos, seguiu problemática em 2023. Não conhece o carro que projetou e atravessa um ano de inacreditável oscilação, em meio a uma complicada transição. E como desgraça pouca é bobagem, a dupla de pilotos também não vive a melhor das temporadas, com erros e desentendimentos com o próprio time, e isso também tem um peso no resultado geral da primeira parte de temporada dos italianos na F1

Depois de um 2022 decepcionante e que culminou na saída de Mattia Binotto ao fim da temporada, a Ferrari tentou novos caminhos com a contratação de Frédéric Vasseur e apostou em um conceito diferente para a SF-23. O campeonato atual, portanto, teve início meio a uma transição de comando e mudanças estruturais sérias. Mas a escuderia não teve tempo para absorver as transformações e precisou se jogar do jeito que deu no Mundial que começou no Bahrein, em março. E no apagar das luzes no deserto, os ferraristas se viram em apuros.

É bem verdade que a Ferrari soube ler muito bem o regulamento no ano passado e colocou na pista um carro rápido e potencialmente vencedor, mas se perdeu tecnicamente ao longo da temporada, um pouco em função da diretiva sobre os quiques e muito por causa de uma direção equivocada, além dos erros de sua dupla de pilotos e de um rendimento aquém. Desta vez, a ideia foi trabalhar dentro de uma expectativa controlada e menos eufórica. Deu certo em partes, mas o que se viu na primeira parte de 2023 foi uma equipe acuada e com medo de sua própria criação.

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Não se pode colocar na conta de Vasseur o projeto inicial dos italianos — tem muito de Binotto e sua equipe na SF-23 —, mas é possível já cobrá-lo pelo desenvolvimento e pelas decisões tomadas a partir do Bahrein. O caso é que, depois dos perrengues do ano passado, a Ferrari procurou um caminho mais inventivo e logo de cara ficou claro que havia potencial nas ideias apresentadas pelos italianos. A meta para a nova temporada foi ganhar velocidade de reta, para encarar a Red Bull, sem deixar de atender ao equilíbrio e proporcionar maior eficiência aerodinâmica — característica que marcou o modelo de 2022, principalmente na primeira parte do campeonato.

De fato, foi possível notar uma melhor performance em linha reta — embora não compatível com aquilo que os taurinos fazem. Ainda assim, um elemento importante e um passo à frente. Tudo bem que a equipe enfrentou problemas no Bahrein e na Arábia Saudita — falhas que chamaram a atenção, sobretudo com relação a um crônico desgaste de pneus e uma alta sensibilidade a características de pista/condições climáticas. A confiabilidade levantou dúvidas, mas os engenheiros foram capazes de acertar a configuração geral e conseguiram alguns avanços GP da Austrália, o terceiro do ano. Ali pareceu realmente um ponto de virada técnico.

Ainda assim, a Ferrari aparecia apenas na quarta posição dentro da hierarquia de forças da Fórmula 1, uma vez que a Red Bull seguia inalcançável, enquanto a Aston Martin brilhava em um início de temporada dos mais promissores. A Mercedes, por sua vez, tentava sair do buraco. Mesmo tendo nas mãos um W14 instável, Lewis Hamilton e George Russell compensavam com atuações sólidas. Diferentemente, os ferraristas se deparavam com erros e queda de ritmo de sua dupla. Inclusive, a etapa australiana é marcada por equívocos inaceitáveis de Charles Leclerc e Carlos Sainz — ambos envolvidos em batidas que poderia ter sido evitadas.  

De toda a forma, quatro semanas depois, a Ferrari deu sinais de que havia encontrado a fórmula para se aproximar da Red Bull. O Azerbaijão a colocou na segunda posição na ordem de forças, simplesmente porque foi capaz de fazer algo que ninguém havia conseguido em 2023: parar os taurinos — ao menos em classificação. Com uma asa traseira eficaz, Leclerc conquistou as duas poles disponíveis em Baku. De novo, a sensação era de que os ferraristas estavam recomeçando a temporada. Mas aí, na corrida, a equipe austríaca engoliu a rival italiana. Mais que isso, o desempenho geral na etapa azeri acabou por deixar mais perguntas do que respostas. Isso porque pareceu evidente que a escuderia só se apresentou melhor por causa da natureza do traçado urbano.

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Charles Leclerc, apesar dos erros, é o único ferrarista no pódio em 2023 (Foto: AFP)

E se o circuito de rua foi o responsável por colocar a equipe italiana alguns degraus acima, seria natural manter essa pegada em Miami, a corrida seguinte, não? Não! Pois a Ferrari decidiu levar para a Flórida o primeiro grande pacote de atualizações. Houve, claro, um questionamento sobre a escolha da Flórida. Sendo uma pista muito singular e, dado o asfalto novo, não se mostrou o melhor lugar para testes. Só que, mais uma vez, a decisão foi errada. A pista americana expôs toda a fragilidade ferrarista: do pobre ritmo de corrida a incrível degradação dos pneus. Ao fim daquela corrida, Vasseur sequer soube explicar os resultados.

Tamanha oscilação de performance, mesmo considerando as atualizações, passou também a levantar dúvidas sobre o trabalho ferrarista, na linha de que nem mesmo os engenheiros entendiam as respostas do carro, nem os efeitos das novidades. Isso também ganhou holofote por conta das decisões atrapalhadas em termos de estratégia, tanto em corrida quanto do ponto de vista técnico. Após Miami, a escuderia optou por só levar um novo conjunto de peças novas em Barcelona, na Espanha, mas antes passou vergonha em Mônaco, quando Charles Leclerc cruzou a linha de chegada a mais de 1min de Max Verstappen.

Para a etapa espanhola, a Ferrari mudou tudo e apresentou quase uma versão B da SF-23. Os engenheiros investiram em um redesenho de toda a parte lateral, do assoalho e difusor, e não hesitaram em buscar inspiração nos sidepods usados pela Red Bull. No entanto, o resultado foi decepcionante. O carro se mostrou difícil em temperaturas mais baixas e condições adversas, sofreu com o equilíbrio e não recuou em relação ao desgaste dos pneus. Curiosamente, o salto de qualidade esperado para a Catalunha apareceu apenas no Canadá. Embora não tenha sido capaz de entrar em uma briga com a Aston Martin e a Mercedes, os carros vermelhos finalmente apresentaram um ritmo de corrida melhor e uma degradação consideravelmente menor. E isso arrancou sorrisos nos boxes italianos.

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Carlos Sainz vive às turras com a Ferrari por desacordo em estratégias (Foto: Ferrari)

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O bom momento acompanhou a Ferrari na Áustria, onde também mostrou que já dominava mais as curvas de alta velocidade. Leclerc reapareceu no pódio, com uma diferença bem menor para Verstappen. Uma vez mais, pareceu que a Ferrari havia se encontrado. Alarme falso, porém. Os GPs seguintes, na Inglaterra e na Hungria, foram decepcionantes e os sinais de recuperação só ressurgiram na Bélgica, na última parada antes da pausa das férias do verão europeu.

Em Spa-Francorchamps, apesar de jamais se aproximar da performance dos taurinos, os ferraristas foram melhores que seus rivais diretos, tanto em ritmo de corrida quanto de classificação. O monegasco acabou no pódio depois de largar da pole, e isso serviu de alívio na saída para o descanso tradicional. Mas mais que isso: também deixou a impressão de que, sem erros, Maranello tem uma chance de destravar o potencial da SF-23, o que é imperativo não só para a atual temporada, mas principalmente para a do ano que vem.

Mas tudo ainda é um mistério na Ferrari. O modelo vermelho ainda oscila e segue imprevisível, mesmo apresentando dados mais confiáveis nesse fim de primeira metade de campeonato. Só que o que pesa no cenário ferrarista também são as decisões atrapalhadas, as discussões intermináveis sobre os planos A, B, C de estratégia e a absoluta falta de paciência dos pilotos com os engenheiros, embora eles mesmos estejam devendo performance — Leclerc se envolveu em batidas e exibiu uma queda de desempenho em classificação, enquanto Sainz sofreu mais para tirar o máximo do carro, além dele próprio também se colocar na berlinda.

Vasseur chegou à Ferrari no fim do ano passado (Foto: Ferrari)

Não será uma segunda fase de temporada fácil, especialmente do ponto de vista da fábrica, que ainda segue em mudanças e reorganização de diversos setores — a mais recente, sendo a perda de Laurent Mekies, que ocupava o cargo de diretor-técnico. Além disso, há também a silly season, uma vez que os contratos dos dois pilotos vencem no ano que vem, além dos boatos sobre o interesse ferrarista em Hamilton.

De toda a forma — e embora isso seja também uma derrota —, o terceiro lugar no Mundial de Construtores é o alvo mais tangível, mas a Ferrari terá de ser perfeita dentro e fora das pistas, para se manter à frente nesse inesperado revezamento de força que vive a F1 ‘A’, com Mercedes, McLaren e Aston Martin sempre à espreita. Então, talvez não seja uma má ideia seguir o conselho de Sainz, que pediu uma Ferrari mais consistente e menos sonhadora.

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